O vinho é um negócio. Não podemos esquecer disso.

Glamour é bom, mas o vinho é feito para ganhar dinheiro, diz o enólogo mais globalizado do planeta. Para ele, é possível fazer vinhos decentes em qualquer lugar, inclusive no Nordeste.


O enólogo francês Michel Rolland é um dos consultores mais globalizados do mundo. Vinícolas de 14 países o contratam a peso de ouro para produzir vinhos cada vez melhores e ganhar o crescente mercado internacional da bebida, que movimentou US$ 107 bilhões em 2005. Seus conselhos já ajudaram a ampliar o negócio no Novo Mundo, em países como Estados Unidos, Brasil, Argentina, Chile e África do Sul; e no Velho Mundo, incluindo França, Itália, Portugal e Espanha. Até a Índia o chamou. Para ele, é possível produzir vinhos de qualidade em qualquer lugar, desde que sejam feitos os investimentos corretos, da plantação à vinificação. "Estou pronto para ir à Lua", brinca. Ao contrário do arrogante francês retratado no filme Mondovino, em 2004, Rolland é simples e bemhumorado. E detesta quem faz o estilo "enochato". Ele esteve no Brasil em meados de julho para lançar cinco vinhos superpremium da Miolo Wine Group - seu cliente há três anos -, dentre eles o Lote 43 safra 2004 e o Merlot Terroir safra 2005. Para Rolland, esses vinhos nacionais estão melhorando ano após ano, mas ainda é cedo para apresentá- los ao poderoso crítico americano Robert Parker, de quem é amigo. "Quem sabe, em dois anos", disse à DINHEIRO.

"O Vale do São Francisco pode produzir vinhos bons e baratos"


"Um bom vinho é aquele que você gosta, não o que o Parker gosta"


Segue a entrevista da revista IstoÉdinheiro com Rolland:

DINHEIRO - Como é trabalhar simultaneamente em ambientes tão diferentes, com terrenos tão distintos? 
ROLLAND -
 É fantástico. Sou um enólogo simples de Pomerol, em Bordeaux. Depois de trabalhar dez anos, comecei a achar tudo muito parecido. E não tinha a paixão suficiente para ficar 30 anos num mesmo lugar. Tive a chance de trabalhar fora da França. Pela primeira vez, nos Estados Unidos, na Califórnia. Não sei por que, mas depois disso comecei a ser chamado. Argentina, Espanha, Itália. É como uma espiral, não tem fim. Recentemente, me chamaram para ir à Índia. Pensei: mas que clima horrível para vinhedos! Mas fui por curiosidade. É formidável poder ver tantas pessoas de diferentes culturas fazendo vinho em lugares tão distintos no mundo. Estou pronto para ir à Lua, se alguém quiser plantar vinhedos por lá.
DINHEIRO - O Brasil já faz vinho até no Vale do São Francisco. Vale a pena? 
ROLLAND -
 O Vale do São Francisco é como a Índia, não há descanso para os vinhedos. Não acho que podemos produzir o melhor vinho do mundo num lugar como este, mas certamente podemos produzir vinhos decentes, ou mais do que decentes. É um bom lugar para produzir vinhos não muito caros. Pode-se produzir duas vezes por ano, logo, é um bom lugar para se fazer negócios. E o vinho, na verdade, é um negócio. Não podemos esquecer disso. Às vezes falamos de maneira muito poética sobre o vinho, mas no final todo mundo está atrás de negócios. Não conheço ninguém que faça vinho para beber pessoalmente. Todo mundo faz para vender.
DINHEIRO - Precisamos de vinhos ordinários?
ROLLAND - 
Não. Há muitos vinhos de má qualidade. Não acho que o vinho ordinário esteja fadado a desaparecer, sempre haverá pessoas dispostas a bebê-lo. Os muito ruins, feitos com uvas não-viníferas, como a Isabel, deveriam desaparecer. É o que fiz na Argentina há 20 anos. Eles faziam vinhos terríveis. Um bom vinho não é necessariamente um vinho caro. Podemos fazer bons e baratos. É meu objetivo. O consumo no mundo caiu porque todos os países estavam fazendo vinhos ruins. Agora, o consumo está estável ou crescendo. Nos Estados Unidos, para me divertir, compro vinhos de US$ 2,5 no supermercado para provar. Dez garrafas de cada vez. É impressionante a porcentagem deles que são bebíveis.
DINHEIRO - O crescimento do negócio global de vinhos é sustentável? Ou haverá superprodução nos próximos anos? 
ROLLAND - 
Estamos no limite da superprodução. Felizmente, o mercado mundial está crescendo. O consumo não cresce nos países mais antigos, como França, Itália e Espanha, mas mesmo assim bebemos bastante. Na França, o consumo é de 57 litros por ano per capita. Imagine se o planeta bebesse 57 litros por pessoa! Em países como Índia, China, Estados Unidos e Brasil, o consumo médio está crescendo. O mercado de vinhos continuará sendo bom nos próximos 20 anos. Poderemos ter problemas de produção, mas não de superprodução. Na França, há excesso de vinhos. Estamos arrancando as vinhas. Na Itália acontece o mesmo. Talvez possa aparecer uma doença, como a philoxera (que devastou vinhedos na Europa). O clima pode mudar. Fala-se muito sobre o aquecimento global.
DINHEIRO - O sr. sentiu algum efeito do aquecimento global em alguns dos 14 países nos quais trabalha? 
ROLLAND -
 Neste momento, é difícil determinar se este ou aquele problema é causado pelo aquecimento global. O que podemos ver em todo o mundo é que o clima não é estável como era antes em certos lugares. Na França, houve recordes de temperatura nos últimos cinco anos. Quando o sol aparece, vem mais forte. A chuva, mais pesada e a geada, mais agressiva. Na Califórnia, chove como nunca. Em Portugal, em 2006 e 2005, as secas foram as mais fortes da história. Na Argentina, outro dia nevou pela primeira vez em 80 anos.
DINHEIRO - A mudança climática pode ser ruim, mas também pode ser boa? 
ROLLAND -
 Certamente. Bordeaux tinha a tradição de usar açúcar para aumentar o teor alcoólico do vinho. Não fizemos isso nos últimos nove anos. Não foi ruim.
DINHEIRO - O que há de ruim no mercado?
ROLLAND -
 A distribuição está ficando muito concentrada. Grandes grupos, como o Constellation e o Southern Wine & Spirits, são monstros. Como podem distribuir os vinhos que querem, podem matar alguns produtores e até países. Não é bom para um vinho estar em um portfólio gigante. A SWS tem dez mil vinhos no catálogo, é impossível para um vendedor falar de dez mil vinhos. É uma escolha cega para o cliente.
DINHEIRO - Quais foram seus conselhos para a Miolo?
ROLLAND - 
Sempre trabalho a convite. Quando a Miolo me chamou, a decisão de ter um consultor externo já estava tomada. O (enólogo) Adriano Miolo já sabia que teria de mudar. Assim, 80% do trabalho estava feito. Quando a pessoa está convencida a mudar sua maneira de pensar, seus hábitos e tradições, o trabalho principal está feito. Só orientei as mudanças necessárias.
DINHEIRO - E quais foram elas? 
ROLLAND -
 O principal problema no Vale dos Vinhedos era o vinhedo, que não estava adaptado ao clima. Em vez do sistema de latada (como um varal), seria melhor o de espaldeira (em fileiras). Não resta um único vinhedo da Miolo plantado no sistema tradicional. Hoje, eles obtêm mais maturidade e controlam melhor as doenças. Logo, têm mais chances de colher uvas melhores. Sempre digo que não há bons enólogos, mas somente boas uvas. Um bom enólogo pode fazer um vinho ruim com uvas boas, mas nunca um vinho bom com uvas ruins. É o começo de tudo. Há outras mudanças grandes, como o uso da gravidade na vinícola, a redução da produção.
DINHEIRO - O vinho da Miolo melhora a cada ano. Podemos sonhar com um grande vinho brasileiro? 
ROLLAND - 
Nosso gol é fazer melhor. Isso nós conseguimos. Após três colheitas, ainda não sabemos qual é o limite do terroir no Brasil. Precisamos melhorar a cada ano. São regiões diferentes - a Campanha não é igual ao Vale dos Vinhedos, ao Vale do São Francisco - e, em cada lugar, temos que anotar onde dá para melhorar. Sempre há um limite. Podemos fazer bons vinhos em qualquer lugar, mas não podemos sonhar em fazer grandes vinhos em qualquer lugar. Talvez haja lugares melhores no Brasil. A uva Merlot está indo bem. Mas as videiras são novas e os grandes vinhos precisam de videiras mais maduras. Quem sabe, no futuro, ficarão melhores. Já reduzimos a produção, mas talvez ainda não o suficiente para fazer o melhor vinho possível.
DINHEIRO - O Brasil produz um bom espumante. Esta não seria sua melhor vocação, em vez de insistir nos vinhos tintos?
ROLLAND -
 Sim, mas parcialmente. Os espumantes podem ser bem-sucedidos porque as uvas são colhidas muito antes de amadurecer e antes da chuva. O mau tempo não atrapalha. Mas, por outro lado, o vinho espumante é um sucesso em quase todos os lugares. Fazendo a viticultura correta num local particular, pode-se obter boas uvas, como a Merlot.
DINHEIRO - A Merlot é a melhor uva para os tintos no Brasil, como a Malbec é na Argentina? 
ROLLAND -
 É uma boa aposta.
DINHEIRO - Quando elabora um vinho, o que valoriza mais? Seu gosto pessoal ou o do mercado? 
ROLLAND - 
Temos que saber qual é o mercado-alvo. Sabemos o que as pessoas gostam. Não há muitos degustadores bons no mundo, mas há muitos bebedores. E um vinho ruim nunca se dá bem no mercado. Um bom vinho, sempre. Não podemos sonhar alto quanto produzimos vinhos de dois a cinco dólares por garrafa. Fazer bom vinho é caro.
DINHEIRO - É verdade que os consumidores americanos só gostam dos vinhos que o crítico Robert Parker gosta? 
ROLLAND - 
É verdade até certo nível, mas não no consumo em geral. O pobre coitado do Parker degusta muitos vinhos, mas não tem tempo suficiente para provar todos os que chegam ao mercado. Ele é muito influente nos vinhos top, mas não é referência para os que custam 15 dólares ou menos.
DINHEIRO - Essa influência muda a maneira como os vinhos top são feitos?
ROLLAND -
 Acho que não. Em Bordeaux, o Château Lafite não muda, o Cheval Blanc também não. O Lafite é o melhor vinho que podemos encontrar no mundo.
DINHEIRO - Quando o sr. vai levar um vinho brasileiro para ele degustar?
ROLLAND - 
Ainda não estamos prontos. Quem sabe, em dois anos. O Parker é muito esperto. Se eu aparecer com uma garrafa, ele vai provar porque é educado e um bom amigo. Mas isso não é suficiente para dar uma nota, mesmo que goste. Precisamos fazer bons vinhos, repetir e ter mercado lá. Ele escreve para os consumidores. Depois de três bons anos, se tivermos uma boa penetração no EUA, poderemos perguntar a ele.
DINHEIRO - Qual o gosto de um vinho indiano?
ROLLAND - 
O gosto típico de uma região ensolarada. A mistura na Índia é de Cabernet Sauvignon e Shiraz, o vinho é muito frutado e tem uma acidez um pouco baixa.
DINHEIRO - Há pessoas que acham que só podem ser felizes com vinhos muito caros. 
ROLLAND -
 Isso não é verdade. Há vinhos muito bons por preços mais baixos. Podemos achar bons produtos em qualquer faixa de preço. Claro que os melhores vinhos não custam R$ 10, mas, se você quiser um bom vinho de R$ 10, vai encontrar.
DINHEIRO - O que é um bom vinho? 
ROLLAND -
 É aquele que você gosta no momento em que está bebendo. Não precisa beber sempre caro nem sempre barato. Com amigos ou fazendo um piquenique, você pode saborear um vinho simples, bem feito, e ter prazer. Um bom vinho é o que você gosta e não o que o Parker gosta. Se você gosta de vinhos ruins, o problema é seu (risos).
DINHEIRO - Não há muita frescura na degustação de vinhos? 
ROLLAND -
 Sim. Não gosto disso. Sou mais simples quando bebo. Nunca fico descrevendo os vinhos. O que gosto é um sabor global, um aroma bom, uma harmonia. Às vezes a gente pensa demais. O vinho é para ser bebido, só isso.
DINHEIRO - Qual foi o melhor vinho que já bebeu? 
ROLLAND -
 Um Cheval Blanc de 1947.


Por MILTON GAMEZ
Extraído de IstoÉdinheiro >>

Nº EDIÇÃO: 515 | 08.AGO - 10:00