História de uma das leveduras do vinho começou na Patagónia


Equipe internacional liderada por portugueses identificou a origem de espécie de levedura importante na produção de bebidas alcoólicas. O seu DNA reflete um processo de domesticação.



O berço geográfico da Saccharomyces uvarum foi a Patagônia chilena. Usada na produção de vinho e cidra na Europa viajou primeiro daquela região da América do Sul para a América do Norte e daqui seguiu para o continente europeu.

Através da análise e comparação genética entre estirpes selvagens de Saccharomyces uvarum de todo o mundo e estirpes usadas na indústria, uma equipe internacional liderada por portugueses conseguiu verificar a sua origem geográfica e o resultado da domesticação feita pelo homem, conclui um artigo publicado ontem na edição da revista Nature Communications.

O iogurte, a cerveja ou vinho são substâncias produzidas graças à fermentação feita por bactérias ou leveduras. A partir de farinhas ou açúcares, estes micro-organismos alimentam-se, produzindo substâncias como álcool ou ácido láctico.

No caso do vinho, o processo industrial de fermentação alcoólica recorre normalmente à levedura Saccharomyces cerevisiae. Mas em climas mais frios, onde a fermentação é com temperaturas mais baixas, os produtores vinícolas usam a Saccharomyces uvarum.

Alguns vinhos do País Basco (Espanha), de Verona (Itália) ou da Borgonha (França) usam esta espécie de levedura. Assim como a cidra, uma bebida alcoólica produzida com sumo de maçã. Em Portugal, pensa-se que esta estirpe não é usada, preferindo-se a Saccharomyces cerevisiae.

Além de trabalharem melhor a temperaturas mais baixas, “há compostos aromáticos que as leveduras Saccharomyces uvarum produzem que são superiores aos da Saccharomyces cerevisiae”, explica ao PÚBLICO José Paulo Sampaio, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, que liderou a equipa com cientistas da Argentina, dos EUA e de França.

Mas ainda se sabe pouco sobre a origem e a evolução da Saccharomyces uvarum. “O nosso trabalho é procurar as estirpes selvagens para as comparar com as estirpes domésticas e perceber como ocorreu a domesticação”, diz o cientista.

A domesticação de animais ou de vegetais requer a observação e a escolha de seres vivos com certas características consideradas uma mais-valia. Apesar de as leveduras serem microscópicas, observadas só há alguns séculos, José Paulo Sampaio defende à mesma a existência de uma “domesticação”, já que o resultado da atividade das leveduras foi sendo avaliado pelo sabor das bebidas.

“A bebida tem um aspecto sensorial. Os nossos antepassados sabiam dizer: ‘Gosto desta bebida, não gosto daquela.’ Quando uma bebida funcionava, guardavam um bocadinho daquela bebida e usavam-no num novo lote”, diz o cientista.

A equipe fez amostragens de estirpes de Saccharomyces uvarum usadas na indústria na Europa, bem como de estirpes naturais presentes na Europa, na América do Norte e do Sul, na Ásia e na Oceania.

No hemisfério Norte, este fungo encontra-se associado a algumas espécies de carvalhos. No hemisfério Sul, aparece associado a espécies de Nothofagus, um gênero de árvores que nos climas temperados da Patagônia e da Oceania ocupa os mesmos nichos ecológicos que os carvalhos no Norte.

O estudo mostrou a existência de uma grande diversidade genética nas estirpes da Patagônia. Esta diversidade foi decrescendo na América do Norte e na Europa. Através da comparação genética, a equipe concluiu que as estirpes que hoje são usadas na Europa vieram da América do Sul, via América do Norte.

E as estirpes da Oceania são o que resta de um habitat maior, quando a levedura existia no grande supercontinente Gonduana, que há dezenas de milhões de anos se foi partindo na América do Sul, África, Antárctica e Oceania. Não se sabe quando ou como é que a levedura chegou à América do Norte e depois daí até à Europa e à Ásia. Nada indica que o homem tenha tido um papel nesta migração.

“Arriscar-me-ia a dizer que [estas migrações] nos antecederam e que as leveduras têm mecanismos próprios de dispersão que não conhecemos.” Quando é que a Saccharomyces uvarum entrou na produção de vinho é outra incógnita. Segundo o cientista, as amostras mais antigas de Saccharomyces uvarum datam do final do século XIX.

Gene resistente aos sulfitos

Mas os efeitos desta utilização de séculos acabam por se revelar no DNA das leveduras pelas “mutações genéticas”: genes provenientes de outras espécies de leveduras e que aparecem nas estirpes industriais de Saccharomyces uvarum, mas neste caso não se encontram nas da natureza. “Tudo começa com uma hibridação”, explica o cientista: uma célula de levedura de Saccharomyces uvarum cruzou-se ao acaso com uma célula de Saccharomyces eubayanus, usada na produção da cerveja.

O resultado deste cruzamento é uma levedura híbrida, com metade do genoma de cada espécie progenitora. Mas se a nova levedura continuar a cruzar-se só com a Saccharomyces uvarum, o genoma da Saccharomyces eubayanus fica mais diluído até quase desaparecer.

No entanto, alguns genes da Saccharomyces eubayanus podem ser escolhidos e ficar para sempre nas estirpes de Saccharomyces uvarum, como é o caso do gene FZF1. “Este gene é central em muitos mecanismos de resistência aos sulfitos e foi sistematicamente submetido à domesticação.”

Fonte: Publico