Opção ao vinho, qual a gelada para cada dia de inverno?

“Está frio, vamos abrir um vinho.” Quantas vezes você já disse ou ouviu essa frase, usada para deixar a cerveja na geladeira à espera de dias mais quentes? Pois há cervejas boas de beber no frio – assim como há vinhos que combinam com o calor.

Inclusive, é bom que se saiba, a cevada, base da bebida, cresce bem em lugares frios demais para o cultivo de uvas (leia abaixo). Ou seja, em sua origem, cerveja é de frio. O lance é saber como e quais são as cervejas que combinam com inverno.



Fotos e arte: Fernando Sciarra/Estadão

A primeira palavra-chave é forte. E isso quer dizer mais do que simplesmente alcoólica. O termo forte está ligado à quantidade de açúcar no extrato original da cerveja – o líquido que vai para a fermentação, depois de malte de cevada e água serem fervidos. Na fervura, são liberados os açúcares do grão. Uma parte vira álcool, a outra sobra, e deixa a cerveja adocicada.

Cerveja de inverno é assim: doce, alcoólica e encorpada. O corpo vem da alta carga de malte. Quanto mais grão, mais corpo tem a cerveja, que, na mesma medida, ganha textura cremosa e viscosa – o extremo é a barley wine, que, de tanto malte, chega a ser licorosa.

Além de dulçor, álcool, corpo e textura, cerveja de inverno tem outra característica: a cor, mais escura, na medida em que se usam maltes tostados, que trazem notas de caramelo, café, chocolate e quetais, dando complexidade à bebida.

Escuras, potentes e complexas, as cervejas – avaliadas por mim, Raphael Rodrigues, do Allbeers, e Rene Aduan, beer sommelier, às cegas – fazem par com doces e pratos untuosos. Tudo que combina com frio.

Questão de clima

Enquanto França, Itália, Espanha e Portugal são grandes produtores de vinho, Alemanha, Inglaterra e Bélgica são grandes produtores de cerveja. Não é sem motivo: os três primeiros países estão na latitude ideal para produção de vinhos, entre os paralelos 30 e 45. Para lá de 45° (e até 55°) é frio demais para a parreira. E aí vão bem os grãos – entre eles a cevada. Essa divisão geográfica está na raiz do clichê que define vinho como bebida nobre e cerveja como coisa de gente bronca.

No Império Romano, o vinho era a bebida do mundo civilizado, a favorita do conquistador. E a cerveja era a bebida dos bárbaros.

No divertido livro Cervejas, Birras e Brejas, Maurício Beltramelli, criador da meca cervejeira online, o Brejas.com.br, recorre a Plínio, o Velho (23-79 d.C.) para ilustrar como a bebida à base de grãos era mal vista pelos romanos. “Numa das poucas referências à cerveja no período romano, o historiador Plínio, o Velho, crava esta: ‘a população do oeste da Europa faz uso de um líquido com o qual diariamente se intoxica, feito de grãos e água. (…) É tão notável a astúcia desses povos, seus vícios e apetites, que eles inventaram um método de tornar a própria água intoxicante”.



São as mais leves desta seleção – têm menos álcool e menos corpo. São estilos associados ao inverno, mas combinam com os dias em que o sol espanta o frio intenso, frequentes no inverno tropical



Nova Schin Munich Dunkel
Origem: Itu (SP)
Preço: R$ 2,19 (350 ml)

É animador ver cervejarias convencionais fazendo outros estilos – além da lager clara. É por isso que essa Nova Schin está aqui. Na degustação, porém, quando foi revelado que se tratava de uma munich dunkel, concluímos que ela não atende exatamente à proposta (a munich dunkel é bem maltada, e segundo o guia do BJCP, deve ter entre 4,5% e 5,6% de álcool. Esta tem 4,2%, leva cereais não maltados e corante; sua cor deveria vir do malte). O dulçor, marcante, não tem complexidade. Apesar de ser simples, não é daquelas cervejas que se consegue tomar em quantidade. Funciona como cerveja escura para o calor. Combina com paçoquinha.



Bohemia Escura (Schwarzbier)
Origem: Petrópolis (RJ)
Preço: R$ 2,49 (350 ml)

Tem uma cor bonita, parece uma groselha concentrada, marrom com reflexos avermelhados. No nariz, é pouco expressiva, o que não é em si um problema, é só uma característica da família lager. Na boca, é fácil, ligeira no bom sentido, para tomar sem compromisso num dia de inverno em que o sol apareça mais forte. Parece uma cerveja comum que fez um pouquinho de musculação – tem 5% de álcool, não é puro malte e leva corante. A carbonatação (quantidade de gás) é alta e limpa a boca, o que a torna fácil de combinar com alguns tipos de comida, como frituras. Combina com bolinho caipira (de massa de milho com recheio de carne moída).



Amazon Beer Açaí Stout
Origem: Belém (PA)
Preço: R$ 10 (350 ml)

Stout feita na borda da Floresta Amazônica, combina com a hora do almoço de um dia de frio ensolarado. É uma cerveja de inverno com alma tropical. No copo, é bem preta, fechada, não se vê a luz do outro lado, e tem espuma bem fechada também. Na boca, é bem seca e lembra uma schwarzbier (estilo alemão de cerveja escura e com pouco dulçor). O aspecto tostado é bem forte, quase exagerado, e dá a ela uma cara rústica, um clima de taberna. É boa para combinar com algo untuoso e doce, como bolo floresta negra – para manter o clima de floresta. Foi eleita a melhor cerveja do País no Festival Brasileiro da Cerveja, em Blumenau.


Mais potentes, sugerem ambientes fechados, clima introspectivo e cobertor de lã sobre o joelho. Têm mais dulçor, para o bem e para o mal



Paulistânia Vermelha Strong Red Lager
Origem: São Paulo (SP)
Preço: R$ 8,99 (600 ml)

Bem bonita, é vermelhona, quase cor de vinho. Tem um maltado sincero, um amargor leve, um corpo razoável. E um quê de caramelo que conforta e faz com que tenha cara de inverno. O álcool (6,2%) é levemente desequilibrado, no final da boca. Mas o desequilíbrio se reequilibra quando se vê o preço: menos de R$ 10 por 600 ml de cerveja boa. As notas de caramelo combinam com crosta tostada e com creme de leite, o que sugere harmonização com filé ao molho mostarda ou estrogonofe. Ou, ainda, com fondue de carne com molho à base de creme de leite.



Caracu
Origem: Rio Claro (SP)
Preço: R$ 2,34 (355 ml)

Chamou a atenção ao ser servida, por sua textura cremosa. O aroma também animou. Mas na boca foi decepcionante. Tem notas de tostado e é bem doce – lembra café adoçado que esfriou na garrafa térmica. Estava levemente oxidada – com um pouco de gosto de papelão. Funciona mais para cozinhar, como ingrediente da receita de fondue de chocolate. Outra que vai bem como ingrediente para essa receita é a Bohemia Chocolatier, que é bem doce (o que pode fazer que ela agrade quem rejeita cerveja por causa do amargor). Combinam, as duas, com flan de baunilha.

Veja três receitas de fondue que levam cerveja:
+ Fondue de carne com cerveja
+ Fondue de chocolate com cerveja
+ Fondue de queijo com cerveja



Fuller’s Golden Pride
Origem: Londres (Reino Unido)
Preço: R$ 26 (500 ml)

Mais clara do que a maior parte das cervejas deste painel, essa barley wine tem algo de Extra Special Bitter e lembra uma imperial IPA. Ou, como definiu Michael Jackson, o escritor que é a grande referência no assunto, “é o conhaque das cervejas”. Tem 8,6% de álcool. Sua cor é âmbar com leve tom rosado. Parece o pôr do sol que antecede a noite mais fria do ano. É excelente, redonda, equilibrada. O corpo, o amargor, o elegante dulçor, tudo permeado por notas terrosas. Combina com backed potato com chili.



Para tomar ao ar livre, naqueles dias de inverno em que o sol convida a sair da toca, mas o vento frio recomenda cachecol e gorro para dar um passeio



Baden Baden Stout
Origem: Campos do Jordão (SP)
Preço: R$ 12,69 (600 ml)

Com o frio em seu DNA, a receita criada em Campos do Jordão faz pensar num dia frio com sol no alto da montanha. Bem escura, com espuma castanha, é uma cerveja cremosa, encorpada, amarga, parruda. O tostado é seu principal atributo: aparece elegante. É comum entre cervejas feitas com maltes tostados, escuros, o amargor ficar muito rústico, cheio de arestas, com notas de cereal queimado mesmo (pense naquele arroz esquecido no fogo). Aqui aparece elegante, trazendo lembranças de café e chocolate. Combina com filé alpino, aquele com molho de queijo gratinado por cima. Melhor ainda se no molho de queijo tiver um queijo azul. Melhor ainda se for stilton.



Ayinger Celebrator
Origem: Aying (Alemanha)
Preço: R$ 21 (355 ml)

Arrancou suspiros, elogios e declarações de amor. Essa doppelbock é cremosa, complexa e gostosa. É, como o nome sugere, uma festa. É a prova líquida de que cerveja combina muito bem com frio. Tradicionalmente, as doppelbocks eram consumidas no fim do inverno, depois de seis meses de maturação – daí vem parte de sua complexidade. Ela é a cara daqueles dias lindos de inverno com sol brilhante e vento cortante. A cor é âmbar escuro com lindos reflexos rubi, tem o dulçor do malte em destaque, com notas de frutas secas e casca de pão. O lúpulo empresta delicadas notas florais e um amargor leve, fino. Combina com tudo e com joelho de porco pururucado.



Paulaner Salvator
Origem: Munique (Alemanha)
Preço: R$ 10,37 (355 ml)

Ela é um ícone. É a primeira receita da Paulaner, cuja história remonta a 1773. Feita pelo irmão Barnabás, mestre cervejeiro do mosteiro, era servida como substituto do alimento durante a Quaresma. Com 7,9% de álcool, imagina a animação dessa Quaresma no mosteiro. A cor é de outono, acobreada, com reflexos âmbar. E, no nariz, é o inverno no campo, monástico e agrário, com notas de casca de pão e de caramelo. Na boca, ela traz em primeiro plano o malte, com dulçor algo compotado, leve tosta, notas de caramelo; enfim, tudo o que se extrai do malte. Em segundo plano, aparecem notas de especiarias e de eleia. O amargor é sutil e passa rápido. Combina com sanduíche de pernil.



Se nevasse, essas seriam as cervejas para a neve. São para as noites frias de verdade. Para servir em taças de licor e apreciar, enquanto o fogo queima na lareira. Mais complexas, mais alcoólicas – e mais caras



Struise Black Albert
Origem: Oostvletere (Bélgica)
Preço: R$ 39 (330 ml)

Tem cor e espuma densas, bem fechadas. Parece que vai ser uma “empireu-stout”, brincadeira que mistura o radical de empireumático (a família de notas de tostado e queimado), com o termo imperial, que define cervejas com carga extra de malte. Mas aí ela começa com frutas maduras, depois café, caramelo e chocolate. Passa pelos aromas tostados, e aparece até um leve toque floral. Tem o dulçor do malte e o amargor do lúpulo. Quase todos os aromas que podem aparecer em uma cerveja estão aqui. Combina com ossobuco com polenta.



Harviestoun Ola Dubh 30th
Origem: Alva (Escócia)
Preço: R$ 69 (330 ml)

Edição especial de aniversário de 30 anos da cervejaria escocesa, essa old ale com 8% de álcool passa seis meses em barril de carvalho usado anteriormente na maturação do uísque single malt Highland Park. É bem escura e parece café. Quase não tem espuma, apenas uma ou outra bolha de contorno castanho. As evidentes notas de madeira fazem pensar em montanha, chalé e lareira. Para quem fuma charuto, essa pode ser uma boa companhia para baforadas. Combina com tâmaras enroladas em fatias de bacon.



Brouwerij De Molen Spanning & Sensatie
Origem: Bodegraven (Holanda)
Preço: R$ 36 (330 ml)

Ela se autodefine como imperial stout-ish, querendo dizer que a inspiração é a stout com carga extra de malte, mas nada seguido à risca. É que, à receita de uma imperial stout comum, acrescenta-se cacau, pimenta chili e sal marinho. O resultado é um inverno engarrafado. Um frio de penhasco à beira-mar. Tem 9,8% de álcool. O primeiro plano é da tosta: aromas de defumado, madeira, café. O segundo é mais caramelo, adocicado. Combina com bolo Souza Leão (feito com mandioca, ovos, leite de coco e açúcar).

Ficaram de fora
Para chegar às doze cervejas desta página provamos 22 amostras – escolhidas com a ajuda do cervejeiro David Michelsohn, da Júpiter. Veja abaixo as que foram deixadas de fora, porque não combinaram com frio ou porque apresentavam defeitos (ligados a armazenamento inadequado e à proximidade do vencimento).

Petra Starkbier
Skol Beats Extreme
Bohemia Chocolatier
Eisenbahn Dunkel
Colorado Berthô
Burgman Working Class
Seasons Limbo
Wäls Quadruppel
Westmalle Dubbel
Adnams Tally-Ho

Fonte: Estadão.
2 de julho de 2014
Por Heloisa Lupinacci